
A história recente da humanidade, com a pandemia de Covid-19, serviu como um severo lembrete da fragilidade de sistemas de saúde frente a crises sanitárias globais. No Brasil, essa experiência sublinhou a necessidade crítica de uma preparação mais sólida e de uma resposta despolitizada. É nesse contexto que surge uma proposta de um grupo de trabalho do Ministério da Saúde para a criação de uma estrutura independente, focada em enfrentar futuras epidemias e pandemias, garantindo que a tomada de decisões seja guiada por evidências científicas e não por agendas políticas ou ideológicas.
A ideia, apresentada pela pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Margareth Dalcolmo, durante uma conferência na Unesp, reflete a percepção de que a resposta a uma crise de saúde pública não pode ser refém de vaivéns políticos. Dalcolmo destaca que uma estrutura desse tipo não visa competir com órgãos já existentes, como a Anvisa, nem replicar modelos como o CDC dos Estados Unidos. Em vez disso, o objetivo central é estabelecer uma política de Estado perene, que transcenda governos e garanta que gestores e profissionais de saúde estejam sempre preparados, evitando o improviso e a surpresa que marcaram o início da crise da Covid-19. A iniciativa busca criar um alicerce institucional para que o país possa agir de forma proativa e coordenada, com protocolos claros e recursos dedicados, desde a vigilância epidemiológica até a resposta em grande escala.
O grupo de trabalho responsável pela proposta, liderado por especialistas e ex-ministros da Saúde, foi instituído pelo atual ministro Alexandre Padilha. A proposta já avançou para um estágio onde os custos e a viabilidade estão sendo debatidos. O custo anual estimado para a manutenção dessa estrutura é de R$ 200 milhões, um valor que Dalcolmo considerou “palatável” diante do orçamento total do Ministério da Saúde para o ano de 2025, que ultrapassa os R$ 233 bilhões. A viabilização dessa iniciativa dependeria da aprovação de um projeto de lei ou medida provisória, o que ressalta a necessidade de um amplo consenso político para sua implementação.
A urgência dessa proposta é reforçada por evidências científicas. Um estudo de 2022, publicado na revista Science Advances por pesquisadores da Fiocruz, alertou para o risco de o Brasil se tornar um epicentro de futuras pandemias. A riqueza de sua biodiversidade, combinada com a vulnerabilidade social e, especialmente, com a flexibilização das políticas ambientais, cria um cenário de risco elevado. Dalcolmo corrobora essa visão, afirmando categoricamente que a questão não é “se” uma nova pandemia acontecerá, mas “quando”. Ela aponta diretamente para a devastação de biomas como a Amazônia como um fator que pode aumentar significativamente a probabilidade de novas epidemias eclodirem no país.
A experiência de Margareth Dalcolmo no campo da saúde pública vai além das questões pandêmicas. Ela é uma das pioneiras na luta contra o tabagismo no Brasil, tendo participado da comissão que deu origem ao primeiro programa nacional de combate ao fumo, uma iniciativa que contribuiu para a notável queda no número de fumantes. Durante o mesmo evento, ela compartilhou sua visão sobre as políticas antitabagismo e o papel de liderança do Brasil na proibição dos cigarros eletrônicos. Essa visão holística da saúde pública, que vai desde o combate a doenças crônicas até a preparação para emergências sanitárias, sublinha a importância de uma abordagem estratégica e de longo prazo para a saúde da população.
A criação de uma estrutura independente representa, portanto, um passo fundamental para o Brasil não ser pego de surpresa novamente. A proposta é um convite à reflexão sobre a necessidade de um compromisso contínuo e desvinculado de interesses políticos imediatistas, para que o país possa proteger de maneira eficaz a vida e o bem-estar de sua população diante dos desafios sanitários do presente e do futuro. A saúde pública brasileira precisa dessa base sólida para se fortalecer e se consolidar como uma política de Estado, pronta para qualquer adversidade.